sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Em defesa da extinção do Tribunal Constitucional.

Já há muito tempo que sou de opinião que o Tribunal Constitucional deveria ser extinto, sendo as suas funções atribuídas a uma secção do Supremo Tribunal de Justiça, composta exclusivamente por magistrados de carreira. Efectivamente, o que se tem vindo a verificar é que a forma de designação dos juízes para o Tribunal Constitucional, por indicação dos partidos ou por cooptação, leva a que as suas decisões sejam profundamente baseadas em razões políticas, que contaminam a apreciação jurídica das questões.

Um exemplo desta situação é o recente Acórdão 399/2010, cuja fundamentação política é mais que evidente. Efectivamente, o Acórdão não considera inconstitucional uma lei fiscal retroactiva, quando a Constituição proíbe os impostos com natureza retroactiva, porque imagine-se, "do exposto resulta que as Leis n.ºs 11/2010 e 12-A/2010 prosseguem um fim constitucionalmente legítimo, isto é, a obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas, têm carácter urgente e premente e no contexto de anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada, não são susceptíveis de afectar o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito, pelo que não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade sobre a normas dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho, nem sobre as normas dos artigos 1.º e 20.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, na medida em que estes preceitos se destinam a produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010". Ou seja, a argumentação do Tribunal Constitucional é a de que, se o objectivo do Estado é obter receita fiscal para o equilíbrio das contas públicas, pode livremente aplicar leis fiscais retroactivas.

Este acórdão vem na sequência do tristemente célebre Acórdão 11/83, onde o Tribunal usou argumentação semelhante para deixar passar um imposto extraordinário retroactivo, acórdão esse, et pour cause, ainda hoje ausente do site do Tribunal Constitucional. Nessa altura, num excelente voto de vencido a esse Acórdão, Vital Moreira escreveu: "Nenhuma razão de Estado (...) pode prevalecer contra a razão da Constituição". E praticamente toda a doutrina criticou esse Acórdão, tendo considerado que o Tribunal Constitucional tinha começado as suas funções com o pé esquerdo. A reacção a esse infeliz Acórdão foi uma das razões que justificou que se alterasse a Constituição para consagrar expressamente a proibição da retroactividade. Mas pelos vistos, tanto faz o que diga a Constituição porque a razão de Estado será sempre prevalecente.

Diz o povo que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. O Tribunal Constitucional começou mal com o Acórdão 11/83 e termina agora pior com este Acórdão 399/2010. A meu ver, estamos perante o verdadeiro canto do cisne do Tribunal Constitucional.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Os simplismos III.

Uma nova versão dos simplismos, ainda mais patética do que a anterior, foi agora introduzida no Diário da República e dá pelo nome de "resumo em português claro", assumindo-se assim que o legislador escreve em português obscuro, pelo que haverá agora que o traduzir para permitir o acesso aos espíritos mais comuns. Pareceria mais simples ensinar regras correctas de redacção e expressão em português corrente, mas isso estragaria o processo de simplificação. Afinal de contas o que é simples é escrever leis em dois discursos, um obscuro e outro claro, e resumir a versão obscura em português claro. E há quem ache que isto é simplificar.

Um exemplo de "resumo em português claro" pode encontrar-se em relação ao Decreto-Lei 117/2010, de 25 de Outubro que "estabelece os critérios de sustentabilidade para a produção e utilização de biocombustíveis e biolíquidos e define os limites de incorporação obrigatória de biocombustíveis para os anos 2011 a 2020, transpondo os artigos 17.º a 19.º e os anexos III e V da Directiva n.º 2009/28/CE, do Conselho e do Parlamento Europeu, de 23 de Abril, e o n.º 6 do artigo 1.º e o anexo IV da Directiva n.º 2009/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril". Fiquei curiosíssimo para saber como se traduziria este diploma em português claro. Parece que é assim: Explica-se "o que é", "o que vai ser feito" e "quando entra em vigor", naturalmente as perguntas mais básicas que se fazem em relação a um diploma.

Mas quando se entra no concreto, lá desaparece o "português claro". Ora, atente-se neste parágrafo, símbolo de concisão e clareza: "Até 31 de Maio os incorporadores têm de entregar à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) os TdB que comprovam a quantidade de biocombustível que incorporaram no ano anterior. Se não tiverem incorporado biocombustível suficiente, podem comprar TdB aos produtores ou a outros incorporadores. Se não entregarem TdB suficientes para cumprir a meta, têm de pagar uma compensação por cada TdB em falta".

Eu só me pergunto quanto é que custa aos contribuintes esta actividade completamente inútil. Não haverá nada mais importante a realizar nesta área, onde os dinheiros públicos poderiam ser melhor empregues?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Os simplismos II

Se alguém tinha dúvidas sobre o verdadeiro disparate que é o Simplegis, esta noticia desfá-las todas. Nao terá o Governo nada mais para fazer no Portugal do século XXI do que andar a procurar revogar os diplomas relativos a situação pessoal de Américo Tomás?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

As declarações da Senhora Merkel.

Depois da política de Sarkozy de expulsão indiscriminada de ciganos, temos agora estas declarações da Senhora Merkel a declarar a falência do multiculturalismo na Alemanha, e a propugnar uma nova política restritiva de imigração, onde até a liberdade religiosa dos imigrantes é questionada. Tudo isto a pretexto de uma "integração", esquecendo-se que a integração se faz precisamente respeitando a diversidade dos seus elementos componentes.

Temos agora o eixo franco-alemão a funcionar em pleno como motor da União Europeia. A sensação que se tem é que agora há dois Estados que mandam na Europa e que já esqueceram todos os valores que estiveram na base da construção europeia. E nem sequer a Comissão Europeia, sob a presidência do nosso conterrâneo Durão Barroso, demonstra alguma capacidade de resistência perante o Diktat franco-alemão.

Como admirador da cultura alemã, tenho pena de assistir a uma sua chanceler a pôr em causa com estas declarações todos os valores que estiveram na base da reconstrução da sociedade alemã no Pós-Guerra. É verdade que a Senhora Merkel vem da ex-RDA, e não terá por isso assistido a esse percurso. Eu recomendava-lhe, no entanto, que fosse ver o magnífico filme de Rainer Werner Fassbinder, Angst essen Seele auf, sobre as dificuldades e a incompreensão que os imigrantes suportaram na Alemanha, a eles se devendo grande parte do trabalho efectuado na reconstrução alemã. Talvez aí pensasse um pouco sobre a sua declaração de falência do multiculturalismo na Alemanha.

É manifesto que a crise dramática que atravessamos é o caldo de cultura ideal pra o surgimento de uma vaga de xenofobia, procurando transformar os imigrantes em bodes expiatórios da crise. E Portugal não está livre disso. Como bem disse João Gonçalves, "esta coisa da pen às vezes acaba em Le Pen".

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Os simplismos.

Se há coisa em que este Governo tem sido insistente é na obsessão com a simplificação, esquecendo que certas tarefas do Estado moderno são por natureza complexas. Vende-se, porém, aos cidadãos a ideia de que tudo agora é simples e que, se chegar a uma qualquer repartição, todos os assuntos serão imediatamente resolvidos. A realidade dos factos mostra, no entanto, que tudo não passa de propaganda, ou que as pretensas facilidades acabam por complicar muito mais a vida dos cidadãos, dos quais o Estado continua absolutamente distante. Lembre-se o que foi ter-se recentemente pedido aos beneficiários de subsídios da Segurança Social que fizessem prova dos seus rendimentos… pela internet (!). O resultado foi naturalmente a criação de enormes filas nesses serviços, tudo porque ninguém se lembrou que não é suposto esses beneficiários possuirem dinheiro para computadores e internet.

Mas como a propaganda da simplificação vai de vento em popa, avançou naturalmente o Simplex, que já vai em "quatro anos a simplificar", o que demonstra que simplificar também pode ser um processo complexo e moroso. Depois veio o Simplex autárquico, lançado há dois anos, o qual na Câmara Municipal de Lisboa vem a ser pomposamente, e com maior rigor no latim, chamado de Simplis. Todos sabemos, no entanto, que a burocracia continua triunfante. Os que têm processos por resolver nas repartições do Estado e nas Câmaras sabem perfeitamente do que estou a falar.

Mas como estes simplismos não chegam, o Governo resolve agora lançar um Simplex legislativo a que chama Simplegis. Se o objectivo fosse apenas tornar as leis mais claras, a iniciativa até seria louvável, uma vez que como jurista fico por vezes perplexo com certos textos legislativos, escritos por quem às vezes parece nem sequer saber como se escreve em português. Sempre pensei, no entanto, que isso resulta pura e simplesmente da urgência e precipitação com que se legisla em Portugal. Por exemplo, olhe-se para a clareza de textos como o Código Civil de 1966 e verifica-se logo como a preparação, a ponderação e a competência dos autores do projecto conduzem a boas leis.

No entanto, o que o Governo não é a clareza das leis, mas antes a do ordenamento jurídico e por isso pretende revogar "diplomas que já não são aplicados, mas que nunca foram revogados expressamente". Que utilidade pode isto ter? Vai-se revogar expressamente diplomas já revogados tacitamente? Ou vai-se declarar arbitrariamente o desuso de diplomas antigos que nunca foram revogados? E nesse caso eles não são substituídos? E vai-se começar aonde? Na Lei da Boa Razão do Marquês de Pombal, que nunca foi expressamente revogada, embora tenha deixado de vigorar com o Código Civil de 1867? Na lei de D. Manuel I que determinou a expulsão e conversão obrigatória dos judeus de Portugal, tacitamente revogada pela Constituição de 1822? Ou ainda vamos à procura das leis dos Reis da Primeira Dinastia?

Haverá assim seguramente muito diploma para revogar expressamente. Não admira por isso que o Governo afirme que "em 2010 serão revogados pelo menos 300 leis, decretos-leis e decretos regulamentares nestas condições e será assumido um compromisso de revogar mais diplomas do que os aprovados". O trabalho do Governo passa agora a andar à procura de leis antigas para revogar, enchendo o Diário da República de revogações inúteis. E chamam a isto simplificação. Eu vejo aqui ainda mais burocracia. Na verdade, o Diário da República vai aumentar de dimensão de forma considerável, levando a muito mais trabalho dos juristas para o ler.

Este tipo de simplismo parece-me obra de simplórios.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A situação no Ministério Público.

Não tenho memória de alguma vez no nosso regime democrático, o Ministério Público estar a atravessar uma situação tão complexa como a que vive presentemente. Infelizmente, no entanto, parece que o poder político entende alhear-se completamente da situação, o que contribui ainda mais para o descrédito das nossas instituições, o que é especialmente sério numa época de crise como a que atravessamos.
Um Ministério Público autónomo e prestigiado é essencial para que os cidadãos possam confiar no sistema de justiça, e sem a confiança dos cidadãos na justiça são os próprios fundamentos do Estado Democrático que são postos em causa. Os responsáveis pelo Ministério Público têm por isso o dever de nada fazer que possa acarretar qualquer prejuízo para a imagem da instituição de que fazem parte, que é a garantia do funcionamento do Estado de Direito.
Não se compreende por isso que um Procurador-Geral da República procure manter o seu Vice em funções após o limite de idade, e quando não consegue que a Assembleia da República o consinta, sejam proferidas rectificações relativas à autoria de despachos, segundo é noticiado aqui e pode ser confrontado aqui. Mas ainda menos se compreende que o Procurador-Geral da República resolva justificar como devido ao "cansaço" os pedidos de saída de magistrados do DCIAP acabando por ser desmentido pelos próprios.
Diz o PGR que existe "uma campanha para desestabilizar o DCIAP". Não parece, no entanto, que a desestabilização — que não é apenas do DCIAP mas de todo o Ministério Público — resulte de qualquer campanha externa. São os próprios responsáveis do Ministério Público que estão a contribuir para descredibilizar a instituição a que pertencem. E deve-se dizer, em abono da verdade, que o contributo mais sério tem sido dado pelas sucessivas declarações públicas do próprio PGR.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Um prémio Nobel justíssimo


Congratulo-me com esta notícia da atribuição do Prémio Nobel da Literatura 2010 a Mário Vargas Lllosa. Depois de tantos anos em que a Academia Sueca atribuiu o Nobel a escritores medíocres, desta vez acertou em cheio. Vargas Llosa é um escritor de nível universal, tendo retratado a realidade latino-americana de uma forma admirável. Entre os seus livros saliento La Guerra del Fin del Mundo sobre a revolta dos Canudos no Brasil do séc. XIX, onde o autor retrata a alienação colectiva que uma seita religiosa pode provocar, e La Festa del Chivo, sobre a sinistra ditadura de Trujillo na República Dominicana. Obras extraordinárias que nos dão a conhecer uma parte do mundo completamente diferente da realidade europeia.
A única coisa que tenho pena em relação a Vargas Llosa foi que a sua intervenção política não tenha tido o mesmo sucesso que a literária. Afinal perdeu as eleições para a presidência do Peru para Alberto Fujimori, que se veio a revelar um ditador sinistro. A política é uma arte muito difícil, que nem sempre está ao alcance dos intelectuais, por muito brilhantes que sejam.