quarta-feira, 24 de março de 2010

A reforma penal permanente.

O actual Código de Processo Penal é de 1987 e, com as alterações e rectificações a que foi sujeito, já vai na 23ª versão. Por sua vez, o Código Penal é de 1995, e depois das alterações e rectificações que recebeu, vai na sua 24ª versão. Conclui-se assim que se atinge a média de mais de uma versão destes diplomas por cada ano de vigência dos mesmos. É seguramente versão a mais para diplomas fundamentais, que deveriam possuir um alto grau de estabilidade e não ser revistos à primeira sugestão que apareça.
O mais triste exemplo de revisões mal preparadas foi o da Reforma Penal de 2007, com efeitos altamente perniciosos para a segurança dos cidadãos, que disparatadamente se tentou emendar alterando a Lei das Armas.
Agora, apenas quatro meses após ter tomado posse, a nova equipa do Ministério da Justiça propõe à AR a enésima alteração ao Código de Processo Penal. Não se conhecem estudos, trabalhos preparatórios, nem existiu uma mínima discussão na comunidade jurídica, relativamente a esta reforma. Mas uma vez serão os operadores judiciários a pagar a factura da precipitação e impreparação com que se fazem reformas legislativas em Portugal. Até quando?

quinta-feira, 18 de março de 2010

A amnistia fiscal.

A amnistia decretada no Orçamento de Estado para quem colocou ilicitamente rendimentos em paraísos fiscais constitui um verdadeiro escândalo. Numa altura em que se quer agravar brutalmente a tributação dos contribuintes, incluindo os de baixos rendimentos, e se quer sujeitar contribuintes cumpridores, que auferem rendimentos do seu trabalho, a uma taxa expropriatória de 45% cria-se uma via verde para os evasores fiscais poderem regularizar a sua infracção a preços de saldo.

Efectivamente, quem adira a este regime pode voltar a colocar todo o seu rendimento em Portugal, pagando a módica quantia de 5% de impostos e ainda fica com toda a sua situação fiscal e penal regularizada. Com isto o Estado declara pomposamente no seu Orçamento que afinal compensa fugir ao Fisco. Os contribuintes cumpridores, que pagam as elevadas taxas que se conhece, são tratados pelo Fisco como enteados, enquanto que os que recorrem a paraísos fiscais passam a ter o estatuto de filhos pródigos, por cujo regresso se aguarda ansiosamente. Quando regressarem pagarão apenas uma quantia simbólica e, seguindo a melhor doutrina cristã, serão imediatamente amnistiados, sem sequer ser preciso aguardar o pretexto da visita do Papa.

O maior problema que este País possui é o descrédito das suas instituições e a sensação de impunidade que a falência do seu sistema de Justiça transmite à sociedade. Esta medida é mais uma contribuição para esse descrédito. O que o Estado Português acaba de declarar é que só consegue impedir a fuga para os paraísos fiscais, funcionando como um paraíso fiscal. Mas é um paraíso fiscal reservado a alguns evasores fiscais privilegiados. Para a generalidade dos contribuintes cumpridores, promete antes o inferno.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A declaração de Bolonha.

Esta notícia sobre a Declaração de Bolonha está em conformidade com o que sempre pensei sobre a forma deficiente como a mesma foi aplicada em Portugal. Impondo essa Declaração a existência de três graus, bachelor, master e doctor, fez-se uma apressada transposição para os nossos graus de licenciado, mestre e doutor, obliterando que os graus portugueses tradicionais exigiam requisitos curriculares superiores aos graus de Bolonha. O resultado foi a imediata desvalorização no mercado profissional do grau de licenciado, ou pelo menos o estabelecimento de uma distinção entre os graus pré e pós-Bolonha, o que se apresenta totalmente contrário à uniformização de graus pretendida. Queria-se uma uniformização de graus a nível europeu e o que se conseguiu foi uma diferenciação de graus no nosso próprio país.
Qualquer reforma do ensino superior exige ponderação e conhecimento das realidades, não bastando o voluntarismo de querer apanhar um comboio em andamento. É paradoxal que o resultado da Declaração de Bolonha possa ser a redução da empregabilidade dos licenciados após a mesma. Pessoalmente, acho que era altura de uma reflexão profunda sobre os resultados deste processo.

segunda-feira, 8 de março de 2010

A (in)constitucionalidade da ASAE.

Esta decisão do Tribunal Constitucional é manifestamente infeliz. Se o art. 15º, nº1, do Decreto-Lei 274/2007, de 30 de Julho refere que "a ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal" como é que se pode sustentar que a mesma não constitui uma força de segurança para efeitos do art. 164º u) da Constituição? E que dizer da interpretação proposta de que esta alínea apenas se refere a um regime geral das forças de segurança e não ao regime específico de cada uma?
Com esta argumentação, o Tribunal Constitucional vem concluir que uma entidade legalmente designada como "autoridade de segurança" não é uma força de segurança. Confesso que acho a conclusão perturbadora.

A situação do Centro de Estudos Judiciários.

Subscrevo integralmente este artigo do Desembargador António Martins. Fui durante dez anos membro do Conselho Pedagógico do Centro de Estudos Judiciários, período durante o qual tive oportunidade de conhecer três Directores diferentes. O CEJ exerce uma função fundamental de formação de futuros magistrados, tendo essa formação atingido enorme qualidade, a fazer inveja a outras profissões jurídicas, pese embora algumas críticas injustas que tem recebido.
A paralisação em que o CEJ hoje se encontra é mais uma das situações que envergonha o nosso sistema de justiça. Espera-se que os actuais responsáveis pelo Ministério da Justiça resolvam imediatamente esta situação. Ou será que a formação dos futuros magistrados é algo que deixou de interessar ao Governo?

sexta-feira, 5 de março de 2010

As declarações do Bastonário da Ordem dos Advogados.

Com estas declarações, Marinho Pinto vem lançar mais achas para a fogueira que tem vindo a consumir o nosso sistema de justiça. Confesso que me choca o alinhamento total do actual Bastonário da Ordem dos Advogados com as posições do Governo, em termos que não têm paralelo na história da Ordem. Se Sócrates critica o jornalismo de Manuela Moura Guedes, Marinho Pinto aparece no programa dela a acusá-la de falta de deontologia. Se Ministros do Governo surgem a acusar os magistrados de espionagem política, Marinho Pinto vem logo a seguir sustentar que têm uma agenda política e estão a tentar derrubar o Governo.
Reconheço que esta entente cordiale entre a Ordem e o Governo permitiu resolver algumas questões que afligiam os advogados, como os atrasos no pagamento das oficiosas ou a suspensão dos prazos nas férias judiciais. Parece-me, porém, que a Ordem está pagar um preço muito elevado em termos de credibilidade futura com esta actuação do Bastonário. Na verdade, ninguém ligará à Ordem dos Advogados se ela funcionar como uma correia de transmissão das posições do Governo. Numa situação de crise geral do sistema de justiça, esperar-se-ia que a voz da Ordem dos Advogados fosse antes uma referência de serenidade e de contributo para a resolução dos problemas.
A acusação de Marinho Pinto aos magistrados é tão absurda como seria a de acusar o Supreme Court americano de ter uma agenda política contra Nixon quando o obrigou a entregar as gravações do caso Watergate. Na verdade, a actividade política não se exerce à margem do Direito, não deixando os políticos de estar sujeitos à lei como todos os cidadãos, devendo abandonar o cargo quando se comprove que violaram os deveres a ele inerentes. Lembramos, a este propósito, o impeachment de Collor de Melo, salientando que quem apresentou no Congresso a acusação ao Presidente foi a Ordem dos Advogados do Brasil. É este tipo de actuações em defesa do Estado de Direito que deve competir a uma Ordem dos Advogados.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O comunicado do Conselho Superior do Ministério Público

O comunicado que saiu da reunião do Conselho Superior do Ministério Público (disponível aqui) suscita várias dúvidas.
Soube-se primeiro que a reunião do Conselho tinha sido convocada para esclarecimento de algumas questões jurídicas, mas depois o comunicado vem referir que afinal a reunião foi para o Conselho ser informado pelo Procurador "da sua intervenção no dossier respeitante às certidões extraídas do inquérito nº 362/08.1JAVVR da Comarca do Baixo Vouga". A seguir acrescenta-se que "o Procurador-Geral esclareceu o Conselho sobre o que este entendeu perguntar-lhe", considerando o Conselho em conclusão que "estão em causa intervenções de magistrados no legítimo exercício das suas competências funcionais, com observância das metodologias e dos procedimentos característicos da actividade judiciária".
Confesso que, se o objectivo era esclarecer questões jurídicas, continua por esclarecer como é que certidões relativas a um inquérito criminal dão origem apenas a um "dossier", ao contrário do que prevê o art. 262º, nº2, CPP. Também ainda não se percebe como é que o "dossier" pode estar sujeito a segredo de justiça sem ter sido aberto qualquer inquérito. Finalmente, não ficou minimamente esclarecido de quem é a competência para destruir as escutas, sabendo-se que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça já declarou publicamente que considera que não despachou em nenhum "dossier", mas no próprio processo Face Oculta. Infelizmente todas estas questões jurídicas continuam por esclarecer.
O problema é que do ponto 3 desse comunicado parece resultar uma apreciação pública do Conselho Superior do Ministério Público sobre a intervenção dos magistrados nesse processo, o que nos parece não estar no âmbito das suas competências. Em relação ao Procurador-Geral da República, o art. 27º a) do Estatuto do Ministério Público, é muito claro no sentido de que ele não responde perante o Conselho Superior do Ministério Público. Em relação aos outros Procuradores, o Conselho tem efectivamente competência para apreciar o seu mérito profissional, mas não nos parece que tal comporte uma apreciação pública das decisões emitidas num processo.
O comunicado termina com uma reafirmação da determinação do Conselho Superior em "impedir a contaminação do Ministério Público por considerações de índole política, em cumprir e preservar os procedimentos decisórios próprios e em não admitir que se insinuem motivações extra-jurídicas para as posições processuais que o Procurador-Geral da República ou cada magistrado entenda tomar ou cada magistrado entenda tomar de acordo com a Constituição e a lei". Este propósito é inteiramente louvável e com ele não poderíamos estar mais de acordo. Há um processo muito simples de o mesmo ser conseguido: a publicação integral das motivações jurídicas que estiveram na base das diversas decisões tomadas no processo e a sua submissão à apreciação da comunidade jurídica. Só assim se consegue que os cidadãos confiem na Justiça.