segunda-feira, 28 de junho de 2010

Kafka na Ordem dos Advogados.




Esta insistência do Bastonário da Ordem dos Advogados em querer continuar a restringir o acesso à Ordem, mesmo que os Tribunais dêem razão aos candidatos, só me faz lembrar o célebre conto de Franz Kafka, "Vor dem Gesetz", publicado em 1915, aqui traduzido em língua portuguesa. O autor viria depois a incluir esse conto num capítulo de O Processo, o qual deu origem ao filme de Orson Welles, reproduzindo-se acima a parte relativa a esse conto.
Através desta parábola, Kafka demonstra como certas forças na sociedade vão colocando entraves ao exercício por uma pessoa do seu direito, levando a que esta aguarde indefinidamente até que, no fim da vida, acaba por desistir do mesmo. É nessa altura que é confrontada com a asserção óbvia de que, pertencendo-lhe exclusivamente aquele direito, mais ninguém o poderia exercer, pelo que os entraves que lhe foram colocados acabaram por se traduzir na perda definitiva daquele direito.
A Ordem dos Advogados tem o dever de respeitar as leis do Estado, pelo que não pode impedir os licenciados em Direito de a ela se candidatarem criando requisitos novos, que não têm qualquer base legal. O exame de acesso já instituído assemelha-se ao porteiro do conto de Kafka, a quem cabe impedir desde logo a entrada no edifício. O Bastonário vem agora referir, como nesse conto, que ainda existem outros porteiros nos salões interiores, que continuarão a vedar o acesso, mesmo que os tribunais venham a dar razão aos candidatos. A Ordem dos Advogados acaba por ser transformada num exemplo pleno das restrições burocráticas ao exercício dos direitos, tão bem expressas neste conto de Kafka. É pena que ninguém veja a imagem que a Ordem dos Advogados está a dar ao país com esta atitute.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

José Saramago (1922-2010)

O meu encontro com a obra de José Saramago deu-se muito antes do reconhecimento internacional que o autor justamente obteve e foi puramente casual. Uma vez, na feira do livro, encontrei-o a promover as obras que então já tinha publicado e, embora não o conhecesse, impressionou-me a paixão e a energia que parecia dedicar à literatura. Acabei por adquirir por curiosidade a obra Levantado do chão e fiquei deslumbrado com o Alentejo profundo que emana daquelas páginas. Esse fascínio continuou com obras como Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes. Mas confesso que já não apreciei algumas obras do autor onde transmitia mensagens políticas inconsequentes como A Jangada de Pedra (contra o europeísmo) ou o Ensaio sobre a lucidez (apelando ao voto em branco contra a democracia partidária, à semelhança do MFA durante o PREC).
José Saramago gostava de se envolver em polémicas e a religião era frequentemente uma delas. Daí o ter publicado obras como O evangelho segundo Jesus Cristo ou Caim, que lhe valeram fortes críticas de sectores católicos, incluindo a atitude, que ficará na antologia do disparate político, que foi a exclusão da candidatura de O evangelho a um prémio europeu. Curiosamente, passou no entanto completamente despercebida a obra In nomine Dei, uma peça de teatro sobre as guerras religiosas na Alemanha, e especificamente sobre o movimento anabaptista em Münster, que considero uma das obras mais perfeitas de Saramago. Curiosamente, em conversa com colegas alemães, obtive a informação que esse tema ainda é considerado um tema muito delicado para os alemães, mesmo passados vários séculos. Pelos vistos, também aqui Saramago não fugia à polémica.
José Saramago foi um dos maiores vultos culturais do País tendo, pelo facto de ter recebido o Nobel, sido condecorado com o Grande Colar da Ordem de Santiago de Espada, o qual é habitualmente reservado apenas a Chefes de Estado. É por isso manifesto que o actual Presidente da República Portuguesa tinha o dever de estar presente no seu funeral. O cidadão Aníbal Cavaco Silva poderia dizer que não conhecia pessoalmente o falecido e que pretendia continuar as férias com os seus netos. Já o Presidente da República Portuguesa não se poderia furtar a essa obrigação.

domingo, 20 de junho de 2010

A manifestação dos licenciados em Direito.

Segundo se refere aqui, encontra-se a ser preparada pelos licenciados em Direito pós-Bolonha uma manifestação contra os resultados do exame de acesso à Ordem. Como já pude expressar neste blogue, estou inteiramente solidário com a situação destes licenciados em Direito que foram submetidos a um exame que considero ilegal. Não deixo, porém, de dizer que acho um erro esta manifestação, uma vez que a reacção perante o exame da Ordem deverá ser feita antes nos tribunais ou junto do Governo.
A manifestação que está a ser preparada terá exactamente os mesmos resultados que uma que os estudantes de Direito fizeram há alguns anos, no tempo da Bastonária Maria de Jesus Serra Lopes, em reacção contra o facto de ela ter instituído o exame de agregação à Ordem dos Advogados. Nessa altura vieram autocarros de todo o país a Lisboa, cheios de estudantes, que encheram completamente o Largo de São Domingos, gritando palavras de ordem contra a Senhora Bastonária. Esta foi à janela, aguentou estoicamente os protestos, pediu que uma delegação dos manifestantes viesse ao seu gabinete, ouviu as suas razões, e depois disse apenas em resposta perante a comunicação social: "Compreendo perfeitamente os protestos, mas eu não sou Bastonária dos estudantes de Direito, sou Bastonária dos advogados".
Conheço muito bem o actual Bastonário, Marinho Pinto, e aposto que, até pelas eleições que vão ocorrer este ano na Ordem dos Advogados, ele adoraria que lhe proporcionassem uma oportunidade semelhante.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A Declaração de Bolonha e a Ordem dos Advogados.

Esta polémica que se gerou na Ordem dos Advogados a propósito da Declaração de Bolonha demonstra o que sempre pensei: que é um erro gravíssimo a aplicação da Declaração de Bolonha aos cursos de Direito. Mas, ao contrário do que erradamente referiu o Bastonário, a maioria das Faculdades de Direito estava contra a aplicação da Declaração de Bolonha, tendo inclusivamente conseguido que o Governo PSD/CDS excluísse a sua aplicação ao curso de Direito. Apenas quando mudou o Governo, o actual Ministro do Ensino Superior impôs que também os cursos de Direito fossem reduzidos, tendo-se tentado criar nos alunos a ideia de que era irrelevante ter uma formação de cinco, quatro ou mesmo três anos, pois estariam todos nas mesmas condições para exercer uma profissão jurídica. Os resultados dessa política estão à vista.
Perante esta alteração, o CEJ fez o que devia, passando a exigir o mestrado como requisito de acesso à profissão de magistrado. A Ordem dos Advogados propôs o mesmo, ainda no mandato de Rogério Alves, mas não conseguiu que o Governo aceitasse essa proposta, alterando o estatuto da Ordem dos Advogados. Tal posição do Governo é estranhíssima, uma vez que até a Ordem dos Psicólogos passou a exigir mestrado como requisito de acesso à profissão. Não se percebe porque é que um advogado deve ter uma formação inferior a um juiz ou a um psicólogo.
Quanto ao exame de entrada na Ordem, agora aplicado sem qualquer base legal, este foi um dos pontos essenciais da campanha para as últimas eleições da Ordem, sendo uma proposta, não apenas de Marinho Pinto, mas também de Magalhães e Silva, tendo sido sempre apresentada como uma forma de limitar o aumento do número de advogados. Por questões de princípio, quer eu, quer Garcia Pereira, estivemos contra essa proposta, mas pude verificar que ela era extremamente popular entre os advogados. Não é por isso de prever que o exame venha a ser abandonado pela Ordem, apesar da sua manifesta ilegalidade, sendo elucidativo o silêncio em que se colocaram sobre este assunto os actuais candidatos a Bastonário. Vão por isso surgir centenas de processos contra a Ordem, o que a prejudicará seriamente enquanto instituição.
O que me espanta neste momento é a atitude do Governo nesta matéria, que depois de ter imposto a aplicação da Declaração de Bolonha aos cursos de Direito e que a nova licenciatura fosse requisito de acesso à Ordem, coloca-se agora em total silêncio sobre o exame instituído pela Ordem dos Advogados. O Ministro da Justiça nada tem a dizer sobre este assunto?
Quanto às declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, considerando "dúvidas" as certezas que toda a gente tem sobre a Declaração de Bolonha, e pedindo para "esperar para ver" perante a situação que agora surgiu, acho-as muito infelizes. Pelo contrário, são extremamente acertadas estas declarações de Santos Justo, Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A sugestão da fiscalização sucessiva da retroactividade fiscal.

Segundo nos refere esta notícia do i, Marcelo Rebelo de Sousa sugere a Cavaco Silva que proceda à fiscalização sucessiva da retroactividade fiscal, em lugar da sua fiscalização preventiva. Segundo ele, "isso permitiria dissipar as dúvidas que existem em relação à retroactividade do aumento de impostos" e "não bloquearia a entrada em vigor do diploma, como aconteceria se o Presidente optasse por uma fiscalização preventiva, não sendo Cavaco acusado de agir de forma irresponsável, estando a pôr em causa as medidas de austeridade adoptadas pelo governo". Para isso, a fiscalização sucessiva teria que ser solicitada com carácter de urgência "para que a situação não se arraste no tempo". "O Presidente deveria pôr como limite as férias de Verão para obter uma resposta do Tribunal Constitucional".
Esta proposta deixa-me absolutamente perplexo, uma vez que se sabe que esta fiscalização sucessiva nunca teria qualquer efeito prático, levando a que os cidadãos viessem a ser forçados a pagar impostos retroactivos, que são claramente inconstitucionais.
Efectivamente, enquanto que a declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional na fiscalização preventiva impede a entrada em vigor da lei retroactiva, na fiscalização sucessiva a mesma entra em vigor, podendo apenas a sua inconstitucionalidade vir a ser declarada no futuro. Ora, a experiência demonstra que essa declaração de inconstitucionalidade só surge vários anos depois de a lei ter entrado em vigor, altura em que a lei já se estará a aplicar a novos factos tributários. Ao contrário do que refere Marcelo Rebelo de Sousa, não existe qualquer possibilidade legal de o Presidente da República solicitar ao Tribunal Constitucional urgência na fiscalização sucessiva, uma vez que essa faculdade só está prevista para a fiscalização preventiva (arts. 278º, nº8 da Constituição e 60º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
Por outro lado, embora a declaração de inconstitucionalidade tenha em princípio eficácia retroactiva (art. 282º, nº1, da Constituição), a Constituição permite ao Tribunal Constitucional limitar os efeitos da declaração da inconstitucionalidade para o futuro (art. 282º, nº4). Ora, em decisões anteriores o Tribunal Constitucional já declarou que essa limitação é sempre de aplicar em ordem a evitar a restituição de impostos inconstitucionalmente cobrados, dado o impacto que tal produziria nas contas públicas. Em consequência, também pelo mesmo motivo o Tribunal Constitucional já se absteve mesmo sequer de se pronunciar pela inconstitucionalidade de leis fiscais posteriormente alteradas, por considerar que a sua pronúncia não teria qualquer efeito prático, uma vez que nunca ordenaria a restituição dos impostos que pudessem ter sido inconstitucionalmente cobrados.
Em conclusão, esta proposta não me parece representar nada mais do que uma forma de deixar passar esta flagrante inconstitucionalidade, dando à opinião pública a ilusão de que se efectuou algum pedido de fiscalização nesta matéria, que no final nunca chegará a ser apreciado. Espero por isso sinceramente que o Presidente da República não alinhe nesta proposta.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Os resultados do exame de acesso à Ordem dos Advogados

Esta notícia demonstra bem que o exame de acesso à Ordem dos Advogados promovido pelo actual Bastonário não faz qualquer sentido. Efectivamente, um exame destina-se a averiguar os conhecimentos dos candidatos que a ele se submetem e não pode ser usado para limitar aleatoriamente o acesso a uma profissão liberal. Fazer um exame em que 90% dos candidatos não é aprovado não tem qualquer valor como elemento avaliador de conhecimentos, sendo apenas uma forma de limitar administrativamente o número de candidatos à advocacia sem qualquer base legal.
Pessoalmente sempre achei que para se exercer advocacia são necessários cinco anos de formação jurídica, complementados com um estágio profissional, pelo que a redução dos cursos de licenciatura em Direito em virtude da declaração de Bolonha prejudicou imenso os candidatos a advogados. Só que a forma de resolver esse problema passa pela instituição do mestrado em Direito como requisito necessário de acesso à profissão de advogado, coisa que pelos vistos a actual direcção da Ordem não consegue consagrar na lei, apesar da entente cordiale que tem mantido com o Governo. Como não conseguiu instituir esse requisito, o Bastonário pretende agora que o seu exame funcione como meio de pressão, em ordem a dissuadir os candidatos. Mas, como já demonstraram duas candidatas, o mais provável é que toda esta estratégia venha a soçobrar nos tribunais. Efectivamente, se antes tínhamos dois processos contra a Ordem dos Advogados, agora vamos ter centenas. Resta saber quem virá depois resolver esta embrulhada.

terça-feira, 8 de junho de 2010

As leis-retrato II.

Conforme se refere aqui, afinal confirma-se a intenção do Governo em apresentar na Assembleia da República uma proposta de lei, destinada a permitir a resolução de um caso particular. É difícil imaginar maior degradação do Estado de Direito do que a elaboração de leis-retrato, que põe em causa a generalidade e abstracção que devem caracterizar as normas jurídicas. Resta saber se os restantes partidos no Parlamento, e mesmo o Presidente da República, vão alinhar com esta atitude do Governo.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A justiça como "pilar" da revisão constitucional.

Acho interessantíssima esta notícia de que a justiça vai ser o "pilar" do projecto de revisão constitucional que vai entreter os deputados nos próximos tempos. As novidades agora reveladas nesta área dão-nos bem ideia do que resultaria desse projecto, se alguma vez fosse aprovado.
Seria abolida a instrução no processo penal, assim fazendo chegar a julgamento todos os inquéritos, retirando-se aos arguidos a garantia de um controlo jurisdicional prévio antes de serem submetidos a um julgamento criminal. Apesar do carácter facultativo da instrução, ela constitui uma importante garantia dos arguidos, que achamos muito grave que seja retirada.
Ao mesmo tempo seriam criados tribunais especiais para a criminalidade económica e financeira, assim se garantindo aos criminosos de colarinho branco um foro especial, que não os levasse ao tribunal juntamente com os criminosos comuns.
Finalmente, o Procurador-Geral da República passaria a ser designado pela Assembleia da República, assim se repetindo as dificuldades de consenso interpartidário que se verificaram na substituição do Provedor de Justiça e a eternização no cargo dos titulares destes órgão, muito para além dos seus mandatos.
Posso garantir que, com um "pilar" destes, o edifício não se aguenta.
Os problemas que existem na justiça não são de natureza constitucional, pelo que utilizar a justiça para justificar uma revisão constitucional é uma confissão acabada da inutilidade dessa mesma revisão, que mais parece uma manobra de diversão, de quem não quer enfrentar os gravíssimos problemas que afligem o país.