sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O crime continuado

Um dos traços mais revoltantes da Reforma Penal de 2007 foi a alteração ao art. 30º, nº3, do Código Penal, que veio permitir a aplicação da figura do crime continuado aos crimes contra bens eminentemente pessoais, tratando-se da mesma vítima. Essa alteração é insustentável, uma vez que não é concebível que alguém que comete vários crimes contra uma única vítima, provocando naturalmente muito maior sofrimento a esta, obtenha da lei um tratamento de favor face a quem comete precisamente os mesmos crimes perante vítimas diversas.
Na altura, chegou-se a defender publicamente que esta alteração visava a situação particular do processo Casa Pia, o que, a ser verdade, revestiria foros de verdadeiro escândalo. Já é grave que uma Reforma Penal seja realizada a quente, em reacção a um processo concreto, como claramente foi o caso desta. Mas seria gravíssimo que uma alteração ao Código Penal fosse realizada no intuito específico de alterar a moldura penal de pessoas já acusadas nesse processo, face ao princípio de aplicação retroactiva da lei penal mais favorável. No entanto, nenhum dos responsáveis por essa alteração apareceu publicamente a justificá-la, o que me levou na altura a referir que estávamos perante um legislador sem rosto, ditando sem qualquer fundamento normas absolutamente injustificáveis.
Simbolicamente, essa disposição vem a ser alterada (no bom sentido) no próprio dia da leitura do acórdão do processo Casa Pia, através da Lei 40/2010, de 3 de Setembro. Congratulo-me com essa alteração, mas não deixo de considerar inconcebível que uma norma desta natureza possa ter estado em vigor durante três anos. Isso é que constituiu um verdadeiro crime continuado de natureza legislativa.

5 comentários:

José Barros disse...

Embora seja contra a aplicação da figura do crime continuado aos crimes que protejam bens pessoais, não posso concordar com o post.

O crime continuado exige como requisitos a presença de uma "solicitação exterior", em função da qual a culpa do acusado surja consideravelmente diminuída (isso mesmo referido no nº3 do art. 30 do CP).

Como a jurisprudência das secções criminais do STJ não se têm cansado(é ver a base de dados) de dizer, e bem, o crime continuado não se aplica ao abuso sexual de menores, a não ser num quadro de prostituição juvenil (em que o jovem "venda" os seus serviços a um cliente habitual, o acusado). Aliás, que eu saiba, só num caso desses é que o nº3 do art. 30 foi aplicado. Portanto, para finalizar, a figura não podia ser aplicada ao caso Casa Pia (em virtude do facto das vítimas serem crianças de 10 a 13 anos - e não adolescentes - e da circunstância de nenhum deles praticar habitualmente a prostituição, tudo dados insusceptíveis de poder configurar uma solicitação exterior que o artigo exige).

Isto dito, não descarto a hipótese de se ter tratado de uma tentativa muito grave, mas felizmente frustrada, de fazer uma lei medida para o processo Casa Pia. E só o facto de os últimoa anos nos terem levado a pensar que tal é possível, é triste.

Luís Menezes Leitão disse...

Com todo o respeito, discordo da sua posição. A "solicitação exterior" a que se refere o art. 30º, nº2, não tem que vir da própria vítima, pelo que não me parece que o artigo só possa ser aplicado na hipótese que referiu. É verdade que depois houve uma interpretação restritiva dessa norma por parte dos tribunais, mas tal nada demonstra quanto à verdadeira intenção do legislador. Na altura ninguém conseguiu explicar a razão de ser da alteração e toda a gente salientou a coincidência de a mesma se poder aplicar ao processo Casa Pia em curso.

José Barros disse...

Sr. Professor,

Parcialmente de acordo relativamente ao facto de a solicitação exterior não ter de provir da vítima. O artigo não exige e no direito penal vale o princípio da tiplicidade. Mas a jurisprudência demonstra que a hipótese de aplicação da norma, não só se resume a essa, como não se vê com facilidade (eu, pelo menos, não vejo, nem encontro exemplos nos acórdãos dos nossos tribunais) outras situações que se possam subsumir a tal requisito. Os crimes sexuais pressupôem o envolvimento físico da vítima e, portanto, não é fácil conceber que uam solicitação exterior diminua consideravelmente a culpa do arguido quando este vê a vítima debater-se com ele e por isso renova a sua intenção criminosa nessa violência (já não assim se o acto passa por um acordo prévio como ocorre na prostituição).

Dados os factos conhecidos do processo seria, de facto, impossível, aplicar a figura do caso continuado. Os abusos imputados aos arguidos (inclusive, no caso de uma figura política que não chegou a ser acusada) tiveram lugar em locais distintos, em momentos distintos com vítimas distintas, o que prefigura sempre uma renovação da intenção criminosa incompatível com a figura legal.

Mas como referi não excluo a hipótese de o legislador ter actuado de forma moralmente abjecta. O que mais há é alterações legislativas que, por incompetência, nem sequer alcançam os seus resultados mal intencionados.

Cumprimentos,

João Santos disse...

O entendimento da jurisprudência e da generalidade da doutrina não coincide com o indignado post.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-12-2010 (Rel. Cons. Arménio Sottomayor):

«A norma do artigo 30º sofreu alterações durante o período em que se verificou a prática pelo arguido dos actos delituosos. Assim, na reforma de 2007 foi aditado do número 3, com a seguinte redacção: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.”
Esta norma não veio, contudo, trazer qualquer inovação. Com um sentido semelhante à proposta em 1964 pela Comissão Revisora do Código Penal para ser acrescentada ao respectivo Projecto, “a supressão desse período [no Código Penal] não significou que outra solução devesse ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado” (Maia Gonçalves, Código Penal Português – Anotado e Comentado 18, pág. 154). Por isso se pode afirmar que, com a introdução, em 2007, do referido número 3, em nada se alterou a posição jurisprudencial sobre esta matéria, conforme, aliás, se reconhece na própria Exposição de Motivos desse projecto de reforma».

rui cunha disse...

O entendimento vertido no n.º 3 do art.º 30 posteriormente alterado, nada mais consagrava que o entendimento dominante, no sentido de que a continuação não se aplica a bens eminentemente pessoais excepto se estiver em causa a mesma vitima.

A reforma levada a cabo no n.º 3 do art.º 30 nada mais é que a manifestação do que a jurisprudência maioritária entendia. Bem patente na reforma de 1982 tendo nessa data sido acordado que não seria necessário indicar "salvo tratando-se da mesma vitima" visto que tal principio se retirava da frase "mesmo bem jurídico"

Foi esse o entendimento do Prof. Eduardo Correia, a meu ver completamente acertado.

Pena que actualmente as revisões efectuadas sejam levado a cabo por completo ignorantes e que devido à sua incapacidade de legislar tenham provocado o caos legislativo que actualmente vigora.

O acrescento do n.º 3 foi um acto miserável do legislador, que quis passar para o papel aquilo que era patente no corpo do n.º2.

É claro que a mesma vitima tem na sua esfera jurídica o mesmo bem jurídico pessoal. A redundância da legislação actual é flagrante.