sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Os simplismos.

Se há coisa em que este Governo tem sido insistente é na obsessão com a simplificação, esquecendo que certas tarefas do Estado moderno são por natureza complexas. Vende-se, porém, aos cidadãos a ideia de que tudo agora é simples e que, se chegar a uma qualquer repartição, todos os assuntos serão imediatamente resolvidos. A realidade dos factos mostra, no entanto, que tudo não passa de propaganda, ou que as pretensas facilidades acabam por complicar muito mais a vida dos cidadãos, dos quais o Estado continua absolutamente distante. Lembre-se o que foi ter-se recentemente pedido aos beneficiários de subsídios da Segurança Social que fizessem prova dos seus rendimentos… pela internet (!). O resultado foi naturalmente a criação de enormes filas nesses serviços, tudo porque ninguém se lembrou que não é suposto esses beneficiários possuirem dinheiro para computadores e internet.

Mas como a propaganda da simplificação vai de vento em popa, avançou naturalmente o Simplex, que já vai em "quatro anos a simplificar", o que demonstra que simplificar também pode ser um processo complexo e moroso. Depois veio o Simplex autárquico, lançado há dois anos, o qual na Câmara Municipal de Lisboa vem a ser pomposamente, e com maior rigor no latim, chamado de Simplis. Todos sabemos, no entanto, que a burocracia continua triunfante. Os que têm processos por resolver nas repartições do Estado e nas Câmaras sabem perfeitamente do que estou a falar.

Mas como estes simplismos não chegam, o Governo resolve agora lançar um Simplex legislativo a que chama Simplegis. Se o objectivo fosse apenas tornar as leis mais claras, a iniciativa até seria louvável, uma vez que como jurista fico por vezes perplexo com certos textos legislativos, escritos por quem às vezes parece nem sequer saber como se escreve em português. Sempre pensei, no entanto, que isso resulta pura e simplesmente da urgência e precipitação com que se legisla em Portugal. Por exemplo, olhe-se para a clareza de textos como o Código Civil de 1966 e verifica-se logo como a preparação, a ponderação e a competência dos autores do projecto conduzem a boas leis.

No entanto, o que o Governo não é a clareza das leis, mas antes a do ordenamento jurídico e por isso pretende revogar "diplomas que já não são aplicados, mas que nunca foram revogados expressamente". Que utilidade pode isto ter? Vai-se revogar expressamente diplomas já revogados tacitamente? Ou vai-se declarar arbitrariamente o desuso de diplomas antigos que nunca foram revogados? E nesse caso eles não são substituídos? E vai-se começar aonde? Na Lei da Boa Razão do Marquês de Pombal, que nunca foi expressamente revogada, embora tenha deixado de vigorar com o Código Civil de 1867? Na lei de D. Manuel I que determinou a expulsão e conversão obrigatória dos judeus de Portugal, tacitamente revogada pela Constituição de 1822? Ou ainda vamos à procura das leis dos Reis da Primeira Dinastia?

Haverá assim seguramente muito diploma para revogar expressamente. Não admira por isso que o Governo afirme que "em 2010 serão revogados pelo menos 300 leis, decretos-leis e decretos regulamentares nestas condições e será assumido um compromisso de revogar mais diplomas do que os aprovados". O trabalho do Governo passa agora a andar à procura de leis antigas para revogar, enchendo o Diário da República de revogações inúteis. E chamam a isto simplificação. Eu vejo aqui ainda mais burocracia. Na verdade, o Diário da República vai aumentar de dimensão de forma considerável, levando a muito mais trabalho dos juristas para o ler.

Este tipo de simplismo parece-me obra de simplórios.

Um comentário:

Sérgio Catarino disse...

Parabéns e obrigado Professor, por mais este artigo. Muito bem visto!