O incêndio que nos últimos tempos grassou nas cúpulas do Ministério Público tem vindo a servir de pretexto para o surgimento de ataques absolutamente inaceitáveis à transparência que numa sociedade democrática deve existir na aplicação da Justiça. Na verdade, o nosso sistema de Justiça está neste momento debaixo de fogo, existindo uma claríssima intervenção política que pretende instituir autênticas mordaças em torno do nosso processo penal, pretendendo transformá-lo num processo secreto, a lembrar os tempos da inquisição.
A situação começou com a escandalosa reforma do Código de Processo Penal de 2007, a proibir a publicação de escutas, mesmo depois de o processo deixar de estar em segredo de justiça, a não ser que o visado em tal consinta. Apesar dos ecos favoráveis que teve na Itália de Berlusconi, essa norma não tem qualquer paralelo num sistema democrático, sendo inaceitável que a notícia sobre prova existente num processo público possa ficar dependente da autorização de privados. A liberdade de imprensa, essencial num sistema democrático, fica assim à porta do nosso processo penal.
O ataque à liberdade de imprensa é, porém, acentuado quando determinados juristas e jornalistas se unem na praça pública para tentar impedir que os jornalistas possam ser assistentes no processo penal, nos crimes em que a lei permite que "qualquer pessoa" o seja. Trata-se de crimes que atentam contra valores de toda a colectividade, sendo por isso que a lei reconhece a qualquer cidadão o direito de neles se constituir assistente, independentemente de ser jornalista, advogado, médico, estudante, pedreiro ou desempregado. E a partir do momento em que o processo deixa de estar em segredo de justiça pode ser livremente noticiado pelo jornalista, sendo irrelevante que ele seja ou não assistente no processo, embora deva avisar os leitores dessa sua qualidade. Procurar impedir os jornalistas de se constituirem assistentes constitui mais uma tentativa de reforçar a obscuridade do nosso processo penal, sendo evidente que tal não ficará por aí, uma vez que o que interessará é eliminar a possibilidade de controlo pelos cidadãos do decurso desses processos, que está subjacente à atribuição da possibilidade a qualquer pessoa de se constituir assistente. O mais provável será a eliminação dessa possibilidade em futura alteração legislativa, assim impedindo o controlo pela sociedade desses crimes.
Mas onde a tentativa de criar mordaças na Justiça atinge o zénite é quando se propõe a consagração na Constituição (!) da proibição de sindicatos nas magistraturas. Trata-se de uma situação típica de regimes ditatoriais, contrária à liberdade sindical entre nós justamente consagrada. Os magistrados, como profissionais sujeitos a um estatuto de natureza laboral, têm todo o direito de se organizar em sindicatos, tendo estes sindicatos dado um valioso contributo para a denúncia das situações que têm ocorrido no âmbito das magistraturas e apresentado propostas para a reforma do sistema. Pretender transformar os sindicatos de magistrados em bodes expiatórios dos males da Justiça, revendo a Constituição para os proibir, é absolutamente inaceitável num país europeu, parecendo uma solução típica de uma ditadura do terceiro mundo.
É manifesto que estamos na silly season, mas escusávamos de ouvir tantas propostas disparatadas sobre o nosso sistema de Justiça.
Um comentário:
Caro Professor,
Parabéns por mais um óptimo texto.
Não sei se já teve oportunidade de consultar outro excelente texto sobre o mesmo assunto escrito pelo Dr. António José Fialho, mas de qualquer forma deixo aqui o link: http://www.inverbis.net/cidadania/afialho-extincao-sindicatos-juizes.html
Cumprimentos,
L.O.
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