domingo, 3 de janeiro de 2010

Os despachos do Presidente do Supremo sobre as escutas.

Com um grande atraso, face ao que se esperaria, o Presidente do STJ decidiu publicar os seus despachos relativos às escutas em que foi envolvido o Primeiro-Ministro. Esses despachos continuam, porém, a ser extremamente obscuros, sendo que num deles apenas se invocam razões formais para invalidar a decisão do procurador e do juiz de Aveiro, com base numa interpretação que me parece muito controversa da Reforma do Código de Processo Penal de 2007. A ser correcta essa interpretação, teríamos mais um exemplo de que a Reforma de 2007 foi pensada essencialmente para estabelecer um regime de privilégio para titulares de altos cargos políticos, em que o seu juiz de instrução seria sempre o Presidente do STJ.
O que me parece gravíssimo é a opinião pública não ter qualquer informação sobre o que efectivamente se passou nesse processo por parte das mais altas instâncias do poder judicial que, como diz a Constituição, exercem a justiça em nome do Povo. Não está em causa a revelação de escutas, com maior ou menor linguagem desbragada, que é efectivamente dispensável. Está em causa saber quais foram os factos invocados pelo Tribunal de Aveiro que motivaram a intervenção do Presidente do STJ. Ora, os seus despachos são absolutamente omissos em relação a esses factos.
O triste estado do nosso regime democrático fica à vista se fizermos a comparação deste caso com as célebres "Nixon Tapes". Conforme se sabe, o Washington Post decidiu investigar o envolvimento da Administração Nixon no caso Watergate, tendo a certa altura, começado a suspeitar do envolvimento do próprio Presidente Richard Nixon. Soube-se então que o Presidente Nixon tinha o hábito de gravar as suas conversas na Casa Branca. Sabendo-se que essas gravações poderiam comprovar (ou não) o envolvimento do Presidente no caso, o Supremo Tribunal americano intimou o Presidente para que entregasse todas as gravações, tendo este renunciado ao cargo quando se descobriu que tinha apagado parte das mesmas. Naturalmente que as gravações foram posteriormente publicadas, uma vez que se entendeu que o povo americano tinha o direito de escrutinar os actos da sua administração.
Em Portugal, pelo contrário, o povo português é deixado na ignorância total, tendo inclusivamente já decorrido umas eleições nessa situação, para depois delas se fazer sair apenas explicações insuficientes, que só comprovariam a existência de um regime processual penal de excepção, insustentável num Estado de Direito democrático. Para quando um esclarecimento cabal e sem reservas de toda esta estória?

Um comentário:

JB disse...

Corroboro inteiramente as palavras do Senhor Professor. Aliás, gostaria de reconhecer o desassombro e a coragem que hoje em dia se revelam necessários para, em matéria tão melindrosa, defender uma posição pouco simpática para o poder.

Para além da interpretação jurídica duvidosa do artigo 11º do CPP, o que é deveras preocupante - e que não vejo assinalado por uma opinião pública muda e queda sobre o assunto - é a quase certeza de não ter existido inquérito criminal como a lei processual penal exige (262º do CPP). Do que, a ser assim, se retiraria que os despachos do Presidente do STJ seriam inexistentes ou, na melhor das hipóteses, nulos, por não terem sido proferidos em processo próprio como a lei obriga. O que tornaria também inexistentes ou nulas as ordens neles contidas, designadamente a de destruição das gravações.

Ainda ninguém conseguiu resolver esta questão. Nem a mesma é passível de justificação. Não se admite que as decisões do Presidente do STJ não sejam proferidas em inquérito próprio, sendo-o em dossiers mal amanhados sem qualquer identificação e sem possibilidade de consulta do processo pelo cidadão interessado. Parece-me. E parece-me mais: ninguém está interessado em esclarecer tais questões, razão pela qual este será mais um dos muitos escândalos abafados que corroem, desde há anos, a democracia portuguesa.