quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A situação do Vice-Procurador Geral da República III

Como não podia deixar de ser, os deputados fizeram o que lhes competia e rejeitaram a absurda proposta de criar uma norma para resolver um caso particular. Os responsáveis por essa proposta deveriam tirar as devidas ilações do resultado da votação, mas já sabemos que tal nunca irá suceder. Para que não voltem a cair em disparate semelhante, recomendo desde já a leitura desta obra de Gregor Kirchof sobre a generalidade da lei, garantia necessária da liberdade, da igualdade e da democracia. Mas, no caso de não conseguirem ter acesso à moderna doutrina alemã, devo dizer que a simples leitura de qualquer manual de Introdução ao Estudo do Direito também deveria bastar para se conhecer as características das leis, e saber que num Estado de Direito democrático é absolutamente inadmissível a criação de leis-retrato.

domingo, 26 de setembro de 2010

A situação do Vice-Procurador Geral da República II

Já tive aqui ocasião de escrever contra a situação insustentável que é a manutenção em funções do Vice-Procurador Geral da República, violando as regras legais sobre a jubilação dos magistrados numa instituição que tem por missão precisamente defender a legalidade democrática. Mas essa situação parece vir a eternizar-se, sem que ninguém lhe ponha termo, lesando gravemente a imagem do Ministério Público perante os cidadãos.
Ao que parece, o Parlamento vai rejeitar a proposta do PGR no sentido de criar uma lei retroactiva que sanasse a ilegalidade manifesta da continuação em funções do seu Vice. Só o facto de uma proposta dessa natureza ser apresentada e discutida no Parlamento demonstra bem o estado de degradação que atingiu as nossas instituições. Será que noutro país europeu algum Procurador-Geral pensaria sequer em submeter ao Parlamento um projecto legislativo destinado a evitar a jubilação de um seu colaborador próximo? E, mesmo que o fizesse, será que nesse outro país europeu algum deputado, fosse de que partido fosse, admitiria sequer discutir um projecto-lei destinado a resolver um caso pessoal? O sentido de Estado, que todos os membros dos órgãos de soberania devem observar, não deveria impedir o surgimento de casos destes?
Este caso é um sintoma altamente preocupante da crise que atinge o nosso País. E essa crise não é apenas de credibilidade financeira. Atinge profundamente a credibilidade das nossas próprias instituições.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sarkozy e os ciganos.

A decisão do Presidente francês Sarkozy de expulsão das comunidades ciganas de França constitui um grosseiro atentado aos direitos humanos e uma ofensa brutal aos valores europeus. Naturalmente que qualquer Estado tem o direto de controlar a imigração no seu território, mas não é aceitável a prática de expulsões selectivas, baseadas na pertença a minorias étnicas. Sarkozy, com esta atitude, vai de certeza conseguir os votos da extrema direita, essenciais para a sua reeleição, mas lesou a imagem da Europa enquanto espaço comum de liberdade. Não há ninguém que lhe lembre a divisa de França: "Liberté, Egalité, Fraternité"?

sábado, 4 de setembro de 2010

Uma "notícia" do Público.

Fiquei absolutamente surpreendido por esta notícia do Público, com o extraordinário título "Magistrados do STA 'consentem' evasão fiscal das fortunas", o que constitui uma acusação gravíssima, que não me parece que o uso das aspas elimine. O sensacionalismo desse título apenas é atenuado pela explicação: "Decisão do Supremo Tribunal Administrativo cria polémica". Só que quando lemos a notícia não encontramos polémica absolutamente nenhuma, uma vez que o jornalista apenas faz referência à existência de votos de vencido no acórdão 734/09 do Supremo Tribunal Administrativo, o que é perfeitamente comum nos recursos de oposição de acórdãos. Pessoalmente, devo dizer que me parece correcta a decisão que fez vencimento.
A seguir, no entanto, o jornalista entra numa crítica cerrada ao referido acórdão, perfilhando a opinião dos votos de vencido, o que implica estar a escrever por isso um texto de opinião jurídica, e não uma verdadeira notícia. É extremamente comum que surjam anotações críticas de jurisprudência, mas não as esperaríamos encontrar num jornal generalista, mas antes em revistas especializadas. Agora o jornal em questão deveria especificar que se trata de um texto de opinião, uma vez que não vemos que aqui exista qualquer relato de factos, para além da crítica à decisão do Tribunal.
A crítica é, no entanto, feita em termos que me parecem absolutamente inaceitáveis. Na verdade escreve-se que "o acórdão redigido por Isabel Marques da Silva (734/09), magistrada que é filha do conhecido jurista Germano Marques da Silva, conseguiu alterar o entendimento do Pleno". Em primeiro lugar, não vejo a que propósito uma magistrada de um dos nossos Supremos Tribunais, e portanto no topo da carreira, deve ser identificada através da referência aos seus familiares próximos. E não se vê a que título se afirma que ela "conseguiu alterar o entendimento do Pleno", como se o entendimento do Pleno não resultasse precisamente da decisão tomada no recurso com base na oposição de acórdãos.
Para além disso, o texto do jornalista entra em diversas incorrecções e omissões jurídicas que não nos parecem aceitáveis quando alguém pretende criticar uma decisão judicial. O jornalista só cita a Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, quando o que está em causa é o art. 89º-A da Lei Geral Tributária, que aquela lei introduziu, e que já teve cinco versões depois dessa lei. Neste caso, uma vez que se tratava de rendimentos de 2004, a versão aplicável é a da Lei 107-B/2003, de 31 de Dezembro. O jornalista refere, no entanto, com espanto, que "o acórdão do Pleno ainda cita a versão antiga da lei e omite que o legislador a alterou" entendendo que deveria ser aplicada aos rendimentos de 2004 uma alteração da LGT (a da Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro), com início de vigência em 2005, pretendendo assim aplicar retroactivamente uma norma de incidência fiscal. Parecem-me erros a mais para quem é tão afoito a criticar uma decisão judicial por, imagine-se, "reduzir os rendimentos fixados pelo fisco".
Quando compro um jornal, gosto que ele respeite o lema do New York Times: "All the news that's fit to print". Textos apresentados como notícias devem corresponder a um relato objectivo e transparente de factos. Textos de opinião jurídica devem ser identificados expressamente como tal. Neste caso, é manifesto que o Público errou. E não foi pouco.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O crime continuado

Um dos traços mais revoltantes da Reforma Penal de 2007 foi a alteração ao art. 30º, nº3, do Código Penal, que veio permitir a aplicação da figura do crime continuado aos crimes contra bens eminentemente pessoais, tratando-se da mesma vítima. Essa alteração é insustentável, uma vez que não é concebível que alguém que comete vários crimes contra uma única vítima, provocando naturalmente muito maior sofrimento a esta, obtenha da lei um tratamento de favor face a quem comete precisamente os mesmos crimes perante vítimas diversas.
Na altura, chegou-se a defender publicamente que esta alteração visava a situação particular do processo Casa Pia, o que, a ser verdade, revestiria foros de verdadeiro escândalo. Já é grave que uma Reforma Penal seja realizada a quente, em reacção a um processo concreto, como claramente foi o caso desta. Mas seria gravíssimo que uma alteração ao Código Penal fosse realizada no intuito específico de alterar a moldura penal de pessoas já acusadas nesse processo, face ao princípio de aplicação retroactiva da lei penal mais favorável. No entanto, nenhum dos responsáveis por essa alteração apareceu publicamente a justificá-la, o que me levou na altura a referir que estávamos perante um legislador sem rosto, ditando sem qualquer fundamento normas absolutamente injustificáveis.
Simbolicamente, essa disposição vem a ser alterada (no bom sentido) no próprio dia da leitura do acórdão do processo Casa Pia, através da Lei 40/2010, de 3 de Setembro. Congratulo-me com essa alteração, mas não deixo de considerar inconcebível que uma norma desta natureza possa ter estado em vigor durante três anos. Isso é que constituiu um verdadeiro crime continuado de natureza legislativa.