Tenho sido bastante crítico da Reforma do Código de Processo Penal de 2007, cujos resultados estão à vista de todos. Uma das situações que mais me escandaliza é, no entanto, o estabelecimento de privilégios especiais em matéria de processo penal, como resulta do actual regime das escutas. Na verdade, não se compreende como é que certos titulares de órgãos de soberania, mesmo que estejam em causa situações estranhas ao exercício das suas funções, podem ter um estatuto em matéria de processo penal diferente do comum dos cidadãos, como o facto de só poderem ser escutados com autorização do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Este regime lembra-me o instituto da garantia administrativa, que permitia aos governantes do Estado Novo impedir o seguimento de qualquer processo penal contra funcionários públicos, estabelecendo assim igualmente um privilégio em relação a estes. Com a Revolução do 25 de Abril, através do Decreto-Lei 74/75, de 21 de Fevereiro, extinguiu-se essa figura. Espero que também não demore muito para que se possa igualmente revogar o art. 11º, nº2 b) do actual Código de Processo Penal.
Um comentário:
Se me é permitido, discordo em parte do post.
Os especialistas em direito processual penal que tenho ouvido (Costa Andrade, Pinto de Albuquerque e mais alguns, cujo nome não me recordo) têm dito que a norma não pode ser interpretada como abrangendo os chamados conhecimentos fortuitos. Donde, o problema não será da norma, mas sim da sua interpretação (a ter sido aquela que veio noticiada nos jornais).
Por outras palavras, a norma, devidamente interpretada, não consagra privilégios, desde logo, porque não evita que os conhecimentos fortuitos obtidos por via de escutas em que o PM tenha sido apanhado possam servir como notícia de um crime, levando, desse modo, à instauração do competente inquérito criminal e à sua investigação pelo MP junto do STJ.
Já se se interpretar a norma como os jornais dizem que a mesma foi interpretada pelo Presidente do STJ, então temos um problema. Não só de ilegalidade, mas também de inconstitucionalidade (porquanto, nesse caso, certos meios de obtenção de prova valeriam para o cidadão comum, mas não para o PM, o que poria em causa o princípio da igualdade).
Isto que me parece cada vez mais evidente quando ouço os especialistas falar do assunto resulta num cenário ainda mais "inquietante": o PM não teria sido "salvo" de uma investigação criminal, porque a lei prevê um regime especial, de privilégio, mas porque a interpretação errada que aparentemente se fez de uma norma terá resultado na criação de um regime único, de privilégio, para certas entidades, incluindo o PM.
Postar um comentário